É um argumento que não se sustenta, porque deixaria implícito que o Estado não poderia legislar sobre absolutamente nenhum comportamento privado, tenha ou não tenha consequências públicas. Mas não é o que ocorre; quando o julgamento se iniciou, em 2015, o advogado Davi Azevedo, representando a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina e da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, citou a exigência de uso de equipamentos de segurança para motoristas, ageiros e motociclistas para mostrar que há, sim, razoabilidade em determinadas legislações que aparentemente interfeririam na autonomia privada.

E o legislador acertou tanto ao criminalizar o porte quanto ao prever penas alternativas à prisão para o usuário. A criminalização faz sentido porque os efeitos nocivos das drogas, incluindo a maconha, estão fartamente documentados. Da literatura médica ao senso comum e aos relatos pessoais, não faltam evidências de que as drogas não têm “quantidade segura” para consumo e de que seu uso leva a uma espiral de degradação que vai de danos neurológicos à transformação dos viciados em zumbis sem autonomia alguma, o que é facilmente observado nas cracolândias brasileiras. Ignorar que a droga destrói o usuário e seu entorno próximo, especialmente sua família, é deixar a ideologia prevalecer sobre a realidade. E os efeitos que a droga tem são mais que suficientes para legitimar a ação do poder público para coibir sua disseminação. Mas, se é razoável a criminalização das drogas, também é razoável enxergar o usuário como uma vítima da engrenagem que o tráfico faz funcionar. Quem se deixou levar pelo vício, independentemente do grau de responsabilidade que tenha sobre seu próprio infortúnio, precisa mais de tratamento que de cadeia, e o legislador compreendeu isso, livrando o usuário da prisão, reservada ao traficante.

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Isso nos leva ao segundo ponto, e que gerou inclusive uma reação pouco frequente do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco: esta é uma escolha que deve ser feita pelo Legislativo, e não pelo Judiciário. Os ministros do Supremo, mais uma vez, fazem ativismo judicial, assumindo para si o papel de legisladores, alegando uma inconstitucionalidade inexistente para derrubar uma lei da qual discordam, e chegam ao ponto de querer estabelecer regras exatas para separar o usuário do traficante, como o limite de 60 gramas sugerido por Alexandre de Moraes. Chega a surpreender que tal ideia tenha vindo de alguém com agem pela Secretaria de Segurança Pública do maior estado do país, sede de facções poderosíssimas do crime organizado, e que deveria conhecer o grau de engenhosidade do tráfico – algo que não ou despercebido pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que em 2015 alertou para “a institucionalização do exército de formigas”, em que os traficantes ariam a circular com quantidades de droga que lhes permitissem ser tidos por usuários, e não pelo que realmente são.

Com ou sem ajuste no voto de Mendes, certo é que uma vitória da tese defendida por ele e por Barroso, Fachin e Moraes seria um enorme erro, tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, porque mais uma vez usurpa a prerrogativa do Legislativo no estabelecimento da lei penal. No conteúdo, porque daria o sinal verde para o uso livre de substâncias – uma ou várias, tanto faz – comprovadamente nocivas, potencializando todos os dramáticos efeitos sociais que o país já experimenta e enviando ao país uma mensagem diametralmente contrária àquela de que o Brasil necessita.