A importância da imunidade material é tal que ela permaneceu intocada até mesmo quando, em 2001, o Congresso alterou a outra imunidade parlamentar, dita “processual”. Se antes os parlamentares não podiam nem mesmo ser processados sem autorização dos pares, a partir de então estabeleceu-se a regra atual, que impõe determinadas condições para que um parlamentar deixe temporariamente de responder diante do STF por crimes cometidos após a diplomação. A Emenda Constitucional 35/2001, portanto, enviou um duplo sinal à sociedade: os parlamentares não são intocáveis, como se pairassem acima da lei, mas a proteção da sua liberdade de expressão por meio das opiniões, palavras e votos proferidos durante o mandato é essencial para o exercício da democracia.
Dito isso, não há a menor dúvida de que as palavras do deputado estão protegidas pela imunidade parlamentar, e Alexandre de Moraes se equivoca inclusive quando afirmou nesta quarta-feira, durante o julgamento em que o plenário da corte manteve a prisão, que “atentar contra as instituições, contra o Supremo, contra o Poder Judiciário, contra a democracia, contra o Estado de Direito não configura exercício da função parlamentar a invocar a imunidade constitucional do artigo 53, caput. As imunidades surgiram para a preservação do Estado de Direito”. Tal observação faz sentido no caso de atos concretos, mesmo quando cometidos por um parlamentar, mas não no caso de “opiniões, palavras e votos”.
Isso nos leva à questão seguinte: se Silveira tivesse usado os mesmíssimos termos do seu vídeo sem ter mandato parlamentar, ou se não existisse a imunidade garantida pelo artigo 53 da Constituição, ele teria cometido algum crime? Basta ouvir ou assistir aos quase 20 minutos para perceber que há, ali, com toda a certeza, injúria e calúnia dirigidas a vários dos ministros, com termos pesadíssimos, ou seja, os crimes contra a honra estariam configurados. Mas e o desrespeito aos artigos 17, 18, 22, 23 e 26 da Lei de Segurança Nacional, que Alexandre de Moraes disse existir? Novamente, a análise atenta do conteúdo não permite concluir que houve qualquer violação desse tipo. É verdade que Silveira faz uma defesa vergonhosa do AI-5, mas não defende a repetição hodierna desta medida de exceção, bem como não pleiteia nenhuma ruptura institucional, fechamento do Supremo, inviabilização do funcionamento do Judiciário ou algo parecido. Afirmar, por exemplo, que um ou os 11 ministros do Supremo são indignos do cargo, que usurpam funções de outros poderes e que por isso deveriam ser substituídos é parte do debate político, até porque já existe no ordenamento jurídico o meio para que isso ocorra.
Nada disso, no entanto, foi considerado no julgamento-relâmpago, de menos de uma hora, em que todos os demais dez ministros do STF concordaram com a decisão de Moraes e mantiveram a prisão de Silveira. Por mais desrespeitosos que tenham sido os termos usados por Silveira, e por mais que os ministros tenham se visto atingidos em sua honra e seu brio – uma indignação justa, dadas as acusações, xingamentos e palavras agressivas do deputado –, chega a ser difícil de entender que, entre os guardiões da Constituição, ali colocados para julgar sem paixão, não tenha surgido nenhuma voz em defesa enfática do artigo 53 da Carta Magna.
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Ao menos, Moraes e seus colegas não ignoraram que, de acordo com o mesmo artigo 53, a prisão de Silveira ainda terá de receber o aval da Câmara dos Deputados. Isso estava previsto para ocorrer nesta quinta-feira, mas a sessão foi cancelada. Reverter a decisão do Supremo poderia ser visto como mero corporativismo de parlamentares que protegem uns aos outros, mas ao menos nesta situação a casa legislativa estaria demonstrando um entendimento mais correto da imunidade parlamentar que aquele demonstrado pelo plenário da corte. Ainda seria bem-vinda a reafirmação de que, no caso de Silveira, a interpretação correta do artigo 53 exige a conclusão de que o deputado não chegou a cometer crime.
Mas os deputados não podem, de forma alguma, se limitar a isso. Dizer que não houve crime não significa que Silveira deva sair impune. Seu caso exige a atuação firme do Conselho de Ética da Câmara, pois não há a menor dúvida de que se trata de quebra de decoro, ultraando em muito os limites de decência esperados de qualquer cidadão, quanto mais de um detentor de mandato público. Uma suspensão longa ou mesmo a cassação não seriam exagero algum; e, acima de tudo, seriam uma punição perfeitamente legal, ao contrário de tudo o que vem sendo feito neste abusivo inquérito das fake news, que agora levou à prisão de um parlamentar por suas opiniões, ainda que deploráveis.