A necessidade de renovação periódica das prisões preventivas tem uma virtude: exige que a Justiça não se esqueça daqueles detentos que acabam lançados nas cadeias e am meses, muitas vezes anos, até que sejam julgados – ainda que não seja este o caso específico de André do Rap, já condenado em duas instâncias. Em fevereiro deste ano, quando da divulgação do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2019, Moro argumentou que não havia nenhum excesso de presos provisórios no país, comparando a porcentagem brasileira, de 33%, com a de nações desenvolvidas. Ainda assim, são cerca de 250 mil pessoas nessa condição, um contingente enorme e cuja situação pede mais agilidade por parte da Justiça. No entanto, rever a cada 90 dias todas essas centenas de milhares de prisões preventivas coloca uma carga enorme sobre um Ministério Público e uma Justiça já muito sobrecarregados, o que nos faz questionar se não haveria formas melhores de resolver a questão dos presos provisórios sem impor obrigações desproporcionais ao MP e ao Judiciário.

Não são poucos os que defendem que, como a nova redação do artigo 316 torna ilegais as prisões preventivas que não são renovadas e devidamente justificadas, elas precisam ser relaxadas imediatamente, não deixando nenhuma outra alternativa ao magistrado que deseja seguir a lei e está diante de pedido semelhante. Mesmo por essa ótica, segundo a qual Marco Aurélio teria acertado ao determinar a soltura, ele já teria cometido um erro grotesco ao não impor ao traficante nenhuma das medidas cautelares elencadas no artigo 319 do P, como o uso de tornozeleira eletrônica e a obrigação de permanecer em sua residência à noite. Além disso, associações de juízes lembraram, por meio de notas, que há uma série de controvérsias sobre a aplicação deste trecho do P, especialmente a respeito de qual corte deve ser responsável pela análise do pedido de soltura.

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Mas, ainda que Marco Aurélio se julgue plenamente amparado pelo artigo 316 do P para fazer o que fez, o fato é que este pequeno parágrafo não existe isoladamente; precisa ser lido em conjunto com todos os outros trechos que tratam da prisão preventiva, e foi isso que o ministro ignorou. Poderia, por exemplo, ter lido o artigo 312, segundo o qual “a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado” – ora, se um chefão de uma das facções mais perigosas do crime organizado brasileiro, condenado em duas instâncias, anteriormente foragido da Justiça, não se encaixa nos critérios descritos, mais ninguém se encaixaria. E não adianta o ministro se justificar afirmando que “não olha a capa do processo [em referência ao nome do preso], mas o conteúdo”, pois os motivos que levaram à condenação e à prisão preventiva de André do Rap pertencem justamente a esse conteúdo ao qual Marco Aurélio diz prestar tanta atenção.

A lei e o bom senso exigiam que o traficante seguisse preso, e tanto havia alternativas legais para manter encarcerado alguém tão perigoso que o Supremo Tribunal Federal já as usou. Em agosto deste ano, a Primeira Turma analisou um habeas corpus impetrado em favor de outros dois chefes do PCC sob a mesma alegação, de descumprimento do artigo 316 do P, e decidiu, por 4 a 1, remeter o caso às instâncias inferiores. Marco Aurélio havia sido o relator e defendido a soltura, mas foi voto vencido. Semelhante medida neste caso teria bastado para que os responsáveis por solicitar e autorizar a prorrogação da prisão preventiva tivessem percebido o cochilo e remediado a situação, mantendo o traficante preso. Mas, novamente, tendo a caneta na mão, Marco Aurélio preferiu atropelar o precedente estabelecido pela turma, assim como em 2018 atropelara a jurisprudência estabelecida em 2016 pelo plenário quanto à prisão após condenação em segunda instância, ainda por cima tomando uma decisão que provavelmente nem lhe cabia, dado não ser ele o relator dos processos da operação que prendeu André do Rap.

Como nenhum cuidado foi tomado, o megatraficante está solto – e já há outros aproveitando o precedente para requerer a liberdade – e provavelmente fora do país, o que não o impedirá de continuar sendo um perigo para os brasileiros. A repercussão deste caso pode até servir para acelerar uma definição sobre quais os procedimentos a seguir quando os prazos do artigo 316 do P forem descumpridos, e para voltar a jogar luz sobre a PEC da prisão após condenação em segunda instância, que caminha a os lentos no Congresso – se essa medida estivesse em vigor, André do Rap nem precisaria estar sob prisão preventiva, pois já estaria cumprindo a pena à qual foi condenado. Mas é absolutamente estarrecedor que precisemos chegar a esse tipo de extremo para estimular discussões sobre como manter a sociedade brasileira livre da bandidagem.

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