Mas, se o preconceito e a violência contra a população LGBT precisam ser devidamente coibidos e punidos, como fazê-lo de forma correta, sem que no processo acabem atropeladas liberdades básicas, como a de expressão e a religiosa? Tendo oferecido a crítica à maneira como Supremo (e, agora, o Senado) vem tentando lidar com o tema, propomo-nos, agora, a oferecer uma contribuição ao debate legislativo.

Em primeiro lugar, é óbvio que uma criminalização da homofobia precisa envolver os crimes mais graves cometidos contra a população LGBT. Assim como ocorreu com o feminicídio, é perfeitamente razoável que o Código Penal seja emendado para aumentar a punição no caso de crimes motivados única e exclusivamente pela condição da vítima homossexual ou transexual. A inserção de agravantes nos crimes de homicídio, lesão corporal e injúria contemplaria essa situação. Também poderia ser considerada a introdução de uma agravante no artigo 286, que trata da incitação ao crime, quando houver o estímulo a agressões contra homossexuais motivadas por sua orientação sexual.

E, por mais que consideremos inadequada a simples inserção da homofobia na Lei do Racismo, há, sim, dispositivos da Lei 7.716 que poderiam ser aproveitados em uma segunda parte de uma eventual “Lei da Homofobia”. Faz sentido que sejam punidas atitudes como a de negar matrículas, emprego, ou recusar atendimento em estabelecimentos pelo simples fato de alguém ser homossexual ou transexual. São ações de discriminação que não têm lugar em uma sociedade civilizada e pautada na tolerância.

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Mas, uma vez estabelecido o que são os crimes de homofobia, um bom projeto de lei sobre o tema também deve definir com muita precisão as condutas que não são crime, para salvaguardar as liberdades de expressão e religiosa. Para bem entender tais salvaguardas, temos de recuperar a diferenciação necessária entre o ataque “ontológico” a uma pessoa com a inclinação homossexual e a crítica a um comportamento, um ato livre realizado por essa pessoa.

Boa parte do debate sobre a inadequação do PL 672/2019 tem se centrado apenas na proteção do discurso religioso, mas este é um recorte incompleto. Há diversas considerações que envolvem este tema e que prescindem de conotação religiosa, baseando-se em argumentos filosóficos, antropológicos ou biológicos – independentemente do acerto ou não desses argumentos. Por isso, uma crítica à equiparação da união homoafetiva ao casamento, ou à participação de atletas transexuais em competições femininas, para ficar apenas em alguns casos, tem de ser protegida porque sua classificação como “discurso de ódio” viola, em primeiro lugar, a liberdade de expressão – e só depois a liberdade religiosa, naqueles casos em que a crítica tem viés religioso, baseando-se, por exemplo, em textos sagrados ou dogmas de alguma crença.

A distinção feita acima exige, também, que os prestadores de serviço tenham garantido o seu direito à objeção de consciência diante de situações às quais se opõem, independentemente de concordarmos ou não com suas convicções. Do contrário, veremos a repetição, no Brasil, de casos ocorridos nos Estados Unidos, como o do confeiteiro Jack Phillips ou de Barronelle Stutzman, proprietária da floricultura Arlene’s Flowers. Ambos, cristãos, se recusaram a oferecer seus serviços para cerimônias de união homoafetiva e foram processados e punidos – a Suprema Corte reverteu a condenação de Phillips, mas não estabeleceu um precedente que proteja a objeção de consciência em novos casos.

Há uma diferença fundamental entre o ataque “ontológico” a uma pessoa com a inclinação homossexual e a crítica a um comportamento, um ato livre realizado por essa pessoa

Ressalte-se que, aqui, estamos falando apenas da prestação de serviços para atos dos quais se discorda; analogamente, podemos perfeitamente defender o direito de um confeiteiro ou fotógrafo de esquerda recusar um contrato para trabalhar, por exemplo, em uma festa de um partido político de direita em que o homenageado seria o presidente Jair Bolsonaro. Situação diferente seria a de negar o atendimento a um homossexual em qualquer outra circunstância – um bolo de aniversário ou um buquê para o Dia dos Namorados –, o que efetivamente configuraria preconceito. Aliás, nos dois casos em tela, é importante mencionar que a dupla que processou a Arlene’s Flowers tinha sido cliente da floricultura por nove anos sem nenhum problema, e que Phillips ofereceu bolos já prontos e que estavam à venda em sua confeitaria. Isso não os impediu de terem de responder à Justiça, uma perseguição que lideranças LGBT no Brasil já consideraram acertada por vê-la como um meio de “combate à discriminação”.

Agravantes para os casos de agressão, definição das situações que constituem preconceito, salvaguardas para que a liberdade de expressão, a liberdade religiosa e a objeção de consciência não sejam aniquiladas: essas são as três linhas-mestras que deveriam orientar um bom projeto contra a homofobia, que pune o preconceito real enquanto permite o debate democrático sobre comportamentos, sem criar tabus e sem impor mordaças à sociedade.

Nota da redação: A versão deste editorial publicada na edição impressa da Gazeta do Povo que circula neste sábado, dia 1.º, afirma que a continuação do julgamento ocorreria no dia 5, e que a segunda votação do PL 672/2019 estava suspensa. A mudança no dia do julgamento no STF e a inserção do PL 672 na pauta da CCJ do Senado foram decididas após o fechamento do texto para a versão impressa.

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