E isso nos encaminha ao centro da discussão, pois o questionamento sobre a lisura das eleições afeta o coração da democracia. A inquietação sobre possíveis vulnerabilidades tecnológicas ou falhas na governança do processo eleitoral é legítima, desde que exposta da forma mais precisa possível, apontando com clareza onde residem os problemas, para que eles possam ser analisados e levem a uma resposta que prime por essa mesma precisão; do contrário, uma exposição feita em termos genéricos ou a simples contestação do processo como um todo se tornam uma leviandade que coloca em risco a própria sociedade.
A necessidade dessa clareza total na exposição de contestações é ainda mais necessária quando levamos em conta que as evidências de uma fraude eleitoral só costumam aparecer a posteriori, ou seja, depois que o pleito já ocorreu – a única exceção seria o caso de algum insider denunciar e comprovar um esquema ainda em andamento, destinado a violar a lisura de um pleito futuro. Se Bolsonaro efetivamente tivesse provas sólidas a respeito dos resultados de 2014 e 2018, estaríamos diante de algo gravíssimo; e se ele for capaz de apontar indícios consistentes de fraude depois de outubro deste ano, não há dúvidas de que será necessário tomar todas as medidas cabíveis, até mesmo com a anulação da votação fraudada e a realização de nova eleição. Mas a desqualificação a priori do processo eleitoral, ou a insinuação de que já está em curso todo um esquema destinado a roubar a eleição, sem provas disso, é extremamente problemática.
O TSE transformou a lisura da urna eletrônica em um dogma, um tabu, a ponto de perseguir, pela via judicial, muitos brasileiros que fizeram e ainda fazem questionamentos pertinentes a respeito de possibilidades de aprimoramento da votação eletrônica
O raciocínio que atesta a limpeza do pleito tomando como critério o seu resultado (“se eu vencer, é porque a eleição foi limpa; se eu perder, foi porque houve fraude”), além de primário, poderá servir a qualquer candidato derrotado – até mesmo para o petismo, caso o próprio Bolsonaro saia vencedor; o próprio Lula já colocou a urna eletrônica sob suspeita em 2002, e vários outros partidos fizeram o mesmo, afastando-se do assunto apenas quando ele se tornou plataforma de Bolsonaro. E um perdedor suficientemente influente terá, com isso, munição para causar convulsão nacional. Na mais benigna das hipóteses, é de uma enorme irresponsabilidade, que infelizmente o TSE acaba estimulando quando emite uma “nota de resposta” cheia de imprecisões e que, em alguns casos, simplesmente se esquiva de temas importantes, como a possibilidade de auditoria nas urnas e o fato de o Brasil ser um dos raros países que usam equipamentos defasados em comparação com urnas já disponíveis em outras nações.
A pacificação torna-se extremamente difícil nessas condições. A bem da verdade, o estado atual da disputa não dá margem nem mesmo à possibilidade de um aprimoramento significativo do processo eleitoral, pois, enquanto um lado deslegitima toda a votação, o outro se fecha a qualquer debate, limitando-se a aceitar sugestões de menor impacto. Tanto Bolsonaro quanto TSE se empenham em esticar a corda, mas é preciso afirmar que sim, a responsabilidade do presidente da República é maior, pois o potencial incendiário de seu discurso tem tudo para lançar o país no caos, a depender do que o eleitor disser daqui a poucos meses e de como os derrotados reagirem. Ainda estamos em tempo de desarmar esta bomba, mas ela exige que todos tenham mais clareza em palavras e atos, e demonstrem compromisso firme com a aceitação dos resultados da eleição, atitudes que até agora não têm vindo de nenhum dos lados.