Recorde-se, por exemplo, a crítica de Gilmar Mendes à proximidade entre a Lava Jato e a imprensa, que é apenas uma das dimensões da estratégia da operação em relação à opinião pública. Não nos referimos, obviamente, a vazamentos de informações – que a lei e os códigos internos do Ministério Público e da magistratura já vedam e que precisam ser diligentemente investigados –, mas à presença midiática frequente de alguns dos responsáveis pela operação, bem como às entrevistas coletivas concedidas a cada fase da Lava Jato.
A opção pela publicidade total dos atos da operação chamou a atenção por ser praticamente inédita, mas é completamente lícita dentro daquilo que se permite aos responsáveis pela investigação. O que os críticos chamam de “espetacularização” ou de “personalismo” é, na verdade, a intenção de manter a sociedade informada a respeito de cada o da operação e sobre o funcionamento do enorme esquema de corrupção então desvendado. Esses críticos teriam de responder: onde está a irregularidade? Que lei ou código interno proíbe a força-tarefa de se comunicar com a sociedade da forma escolhida pela Lava Jato? Desde quando a transparência ou a ser um mal a combater?
Usar algumas poucas decisões controvertidas, dentre dezenas de milhares, para interpretar o todo é uma falácia construída para estigmatizar a Lava Jato, que deveria ser julgada pelo seu conjunto, e não por algumas poucas ações
Compreendemos quem, nestes casos, julgue ser melhor a ação mais discreta, que se dá exclusivamente nos autos, mas a opção contrária jamais – insista-se, jamais – poderia ser considerada ilegal, ou abusiva, ou excessiva; ambas são legítimas, e a escolha pode ser pautada por questões estratégicas. No caso, além da convicção de que era importante prestar contas aos brasileiros, a Lava Jato também intuiu que deveria conquistar o maior apoio popular possível, já antecipando os movimentos que ocorreriam para desmontar a operação, assim como ocorrera na Itália da Operação Mãos Limpas.
Algo similar, nessa mesma linha de mera preferência estratégica, reside na opção que a Lava Jato fez de buscar cooperação com inúmeros organismos públicos e da sociedade civil, nacionais e internacionais, como recomendam as experiências dos maiores especialistas em todo o mundo. A opinião torta e interessada dos advogados dos acusados, de que qualquer cooperação fora do canal oficial é ilegal, ou pouco a pouco a ser aceita acriticamente inclusive por meios de comunicação sérios e comprometidos com a luta contra a corrupção, sem se dar conta de que isso pode, no futuro, minar por completo o combate ao crime organizado de enormes proporções. Uma pena, deixe-se registrado aqui, que pessoas de bem, por serem avessas a essas estratégias de comunicação e de cooperação, tenham partido dessas discordâncias (que são legítimas) para, sem lógica alguma, chegar à conclusão de que havia irregularidades. Dessa forma, como inocentes úteis, sem distinguir uma coisa de outra, acabaram engrossando o coro dos que querem sepultar a Lava Jato.
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Outro flanco escolhido pelos detratores da Lava Jato está na avaliação sobre determinadas ações ou decisões da força-tarefa ou da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Aqui, é preciso lembrar que sete anos de trabalho incansável geraram uma infinitude de atos jurídicos e processuais – mais precisamente, na casa dos 60 mil, considerando-se o último balanço da operação, que resultou em 130 denúncias contra 533 acusados, com 278 condenações atingindo 174 pessoas. A esmagadora maioria desses atos foi convalidada pelas instâncias superiores do Judiciário, que não viram nenhuma razão para impugnar processos ou condenações devido a irregularidades processuais.
É evidente que, em conjunto tão monumental de atos, haja alguns mais controversos, especialmente quando se trata de navegar em águas ainda não mapeadas – falamos, aqui, de decisões que exigem interpretação da lei penal ou da lei processual, em uma zona cinzenta na qual os limites ainda não estavam perfeitamente delimitados. Mesmo quando a opção da Lava Jato foi a de usar as ferramentas mais rigorosas, não há como imputar a seus protagonistas nem a intenção dolosa, nem um comportamento abusivo recorrente. Trata-se de episódios pontuais em que as escolhas feitas, mesmo quando consideradas inadequadas a posteriori, se deram dentro da margem de discricionariedade permitida a investigadores ou julgadores, e jamais poderiam ser lidas como indicadores de algum animus persecutório ou condenatório, principalmente da parte de Sergio Moro (o juiz, aliás, absolveu um quinto dos réus, e ainda negou centenas de recursos do MPF, o que afasta a tese de um conluio entre Moro e a força-tarefa). Usar algumas poucas decisões controvertidas, dentre dezenas de milhares, para interpretar o todo é uma falácia construída para estigmatizar a operação, que deveria ser julgada pelo seu conjunto, e não por algumas poucas ações.
Na campanha contra a Lava Jato, primeiro transforma-se o acerto em erro, em “abuso”, em “excesso”, para depois avaliar-se o todo pela parte e, por fim, aplicar-se o golpe de misericórdia sobre procedimentos e reputações
O “desmonte moral” da Lava Jato, nesta operação que tenta transformar os verdadeiros bandidos em santos enquanto os investigadores e juízes terminam no banco dos réus, foi potencializado com o circo midiático da “Vaza Jato”, com a divulgação de mensagens atribuídas aos procuradores da força-tarefa e ao então juiz Moro. Embora a invasão dos aparelhos das autoridades seja um fato, nenhuma perícia foi capaz de verificar a autenticidade dos conteúdos divulgados; no entanto, isso não tem impedido seu uso indiscriminado em processos e recursos na Justiça, mesmo que seu valor como evidência nem tenha sido ainda devidamente estabelecido. Gilmar Mendes bem o sabe, e por isso afirmou que os diálogos nem seriam necessários para caracterizar a suspeição de Moro – o que não o impediu de, em flagrante contradição, citá-los longamente em seu voto da semana ada. Ocorre, no entanto, que o conteúdo divulgado, caso seja autêntico, mostra uma interação entre juiz e partes que foi considerada normal até mesmo por ministros do Supremo. “Mantemos diálogos com o MP. Nos 42 anos, mantive diálogo com membros do Ministério Público e advogados de qualquer das partes. Isso é normal”, afirmou Marco Aurélio Mello na semana ada, em entrevista ao jornal O Globo. Diagnóstico idêntico foi feito por inúmeros juristas desde que os supostos diálogos vieram a público, em meados de 2019.
Em resumo, qualquer adjetivo mais brando que “heroico” para descrever o trabalho da Lava Jato não lhe faria justiça. Procuradores, policiais e juízes gastaram até sete anos de suas vidas dedicados à missão de puxar até o último fio de um complexo novelo de corrupção, apesar das inúmeras forças que tentaram dificultar-lhes ao máximo esta tarefa. Usaram com inteligência todas as armas que a lei lhes facultava e tiveram diante de si escolhas difíceis naquilo em que havia margem para várias interpretações e linhas de atuação. E é justamente por terem funcionado, por terem rompido o ciclo clássico da impunidade, com resultados incomensuravelmente benéficos para o país, que essas escolhas e estratégias estão sob fogo cerrado no palco da opinião pública e nos tribunais, como se fossem elas mais escandalosas que o esquema desvendado. Primeiro transforma-se o acerto em erro, em “abuso”, em “excesso”, para depois avaliar-se o todo pela parte e, por fim, aplicar-se o golpe de misericórdia sobre procedimentos, dificultando-os ou proibindo-os, e sobre as reputações daqueles que tanto fizeram pelo país. Defender o legado da Lava Jato, injustamente vilipendiado, é crucial para que o Brasil siga sonhando com o fim da impunidade daqueles que insistem em sangrar o país em nome do próprio bem-estar ou de projetos de poder que fraudam a jovem democracia brasileira.