Mesmo a comunidade médica não encontra unanimidade a respeito dos protocolos de tratamento. No caso brasileiro, por exemplo, enquanto a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Associação Médica Brasileira afirmam que “as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no ‘tratamento precoce’ para a Covid-19 até o presente momento”, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, afirmou ser falsa “essa história de que está estabelecido na literatura que o tratamento precoce não tem efeito na fase inicial”, explicando que “há trabalhos que mostram os benefícios [da combinação de medicamentos] na fase inicial, e outros não”.

Ribeiro deixou claro que não estava afirmando a eficácia do chamado “tratamento precoce”, mas apenas defendendo a autonomia de médico e paciente na definição do tratamento, caso a caso. “Qual foi a nossa postura sobre o tratamento precoce? Deixar o médico definir o que é melhor para o paciente dele. O CFM não incentiva o tratamento precoce ou o condena, tampouco bane”, disse. Apesar de a autonomia – o respeito à decisão do paciente sobre seu tratamento – ser um dos quatro princípios basilares da bioética, ela vem sendo erodida neste processo de politização da pandemia, o que é bastante preocupante.

Não nos cabe, aqui, afirmar se o “tratamento precoce” funciona ou não. Como acabamos de afirmar, há estudos apontando para todas as direções, e cujos resultados estão sob constante escrutínio da comunidade científica e da imprensa especializada. Mas a verdadeira demonização a que o tema está sendo submetido salta aos olhos de qualquer pessoa preocupada com um debate intelectual honesto, tenha ou não familiaridade com o processo de produção científica. Postagens sobre o tema – mesmo vindas de especialistas, ou citando artigos publicados em revistas científicas conceituadas – são apagadas pelas Big Techs e seus autores recebem suspensões. Em um caso escancarado de duplo padrão, exige-se das pesquisas sobre esses medicamentos um grau de rigor que não é solicitado, por exemplo, nos testes com as vacinas – exceção esta, aliás, que é aberta com toda a razão, pois há uma catástrofe sanitária em andamento e que pede respostas imediatas.

O bloqueio total do debate sobre o “tratamento precoce”, além de absurdo, ainda é irracional, por vários motivos. O primeiro, e mais evidente, é a ausência de qualquer outro tratamento para a Covid-19; a única opção disponível é simplesmente tratar dos sintomas e aguardar o curso natural da doença no organismo, que pode tanto regredir, caminhando para a cura, ou se agravar. Além disso, como lembrou o presidente do CFM, a variedade de resultados dos diferentes estudos conduzidos com esses medicamentos não permite chegar à conclusão irrefutável, acima de qualquer dúvida, de que os medicamentos são ineficazes contra o coronavírus ou até mesmo prejudiciais à saúde. Enquanto isso não ocorre, esta possibilidade segue aberta; bloqueá-la, seja por meio da censura a qualquer menção ao “tratamento precoce”, seja pela tentativa de responsabilização judicial de gestores que o oferecem em suas redes de saúde, como demonstram várias investigações e pedidos de esclarecimento feito por Ministérios Públicos país afora, é pura irresponsabilidade.

Diante de uma situação de emergência sanitária, não se pode negar a um paciente infectado e a seu médico o direito de recorrer ao tratamento que ambos julgarem o mais correto, ainda que em caráter experimental

Sim, o mundo só vai vencer de vez a pandemia com a vacinação em massa; sim, as medidas de higiene e distanciamento são importantes na prevenção. Mas, diante de uma situação de emergência sanitária, marcada pela extrema incerteza e na qual praticamente tudo ganha um caráter experimental, não se pode negar a um paciente infectado e a seu médico o direito de recorrer ao tratamento que ambos julgarem o mais correto, estando todos cientes de que, tendo sido esses medicamentos desenvolvidos para tratar outras doenças, e não a Covid-19, o sucesso não é garantido e pode haver possíveis efeitos adversos na sua istração. Aliás, para os médicos e pacientes convictos de que o procedimento correto é justamente o controle dos sintomas, seria igualmente insensato – e uma violação de sua autonomia – impor-lhes o coquetel de medicamentos do “tratamento precoce”. O respeito a essa autonomia, no entanto, está sendo atropelado pela interdição de um debate que pode representar, literalmente, a diferença entre a vida e a morte de pacientes, com uma censura motivada menos pelo rigor científico e mais por preconceitos ideológicos.

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