Outra incompreensão da parte dos defensores católicos da liberdade acadêmica se segue dessa primeira. Os atuais defensores da liberdade acadêmica alegam que se trata de uma condição necessária para buscar a verdade a despeito dos esforços dos atuais progressistas para limitar o discurso nos campi. Segundo tais defensores, só permitindo todas as opiniões, todas as perspectivas, todos e quaisquer desafios, poderemos discernir a verdade.
Essa ideia presume duas coisas que uma instituição católica confiante deveria rejeitar. Primeira: a verdade não é totalmente desconhecida, e portanto não exige uma abordagem que presume que toda e qualquer opinião seja representada para desafiar qualquer ortodoxia. Segunda, e mais insidiosa: sugere que as instituições humanas, tais como a universidade, podem ser organizadas com base no princípio da abertura e da neutralidade absoluta, desprezando quaisquer influências ou compromissos com alguma filosofia, crença e até fé.
O Professor Philpott está correto quando argumenta que universidades devem ser instituições nas quais uma variedade de opiniões se mantém. Elas não deveriam ser câmaras de eco. No entanto, esse argumento negligencia a maneira real como os humanos interagem, satisfazendo-se em fazer alegações (como tantos outros) no âmbito da filosofia abstrata. Ele diz que os estudantes deveriam se sentir livres e bem-vindos para fazer quaisquer argumentos que desejem em suas aulas, em seus dormitórios, nos refeitórios. O mesmo vale para os docentes. Mas, é claro, qualquer estudante sensato sabe que tal condição de abertura “pura” nunca existe – e nenhum de nós deveria querer que existisse.
Todo aluno (ao menos entre os que vão a uma faculdade como Notre Dame) tem bom-senso quanto às limitações da expressão, que no mais das vezes não estão escritas em nenhum código legal, documento oficial ou guia estudantil. Tais limitações são estabelecidas pelas normas da comunidade humana na qual vivemos, que usualmente incluem um grau de deferência perante a autoridade paterna e professoral, respeito por outras pessoas e a issão de que uma “sociedade polida” convida a evitar obscenidades, insultos e rebaixamento. Todos reconhecem as normas e crenças amplas que, em geral, não devem ser confrontadas diretamente, exceto em circunstâncias excepcionalíssimas (o princípio da igualdade humana decerto é um que se qualifica). Temos um bom-senso de como esses limites, numa conversa, podem se expandir e contrair a depender dos nossos interlocutores e circunstâncias imediatas, mudando de registro entre uma rusticidade ocasional com nossos amigos no bar e uma conversa refinada numa ocasião formal.
O que hoje chamam de woke é a nova ortodoxia religiosa, que substituiu por completo as crenças e práticas religiosas das instituições originais cujos prédios e lemas continuam o mesmo, mas cujos deuses mudaram
As universidades não são diferentes. Buscamos a verdade, mas também reconhecemos limites. As universidades sempre são, em algum grau, um collegium, que significa “comunidade”, “sociedade” ou “guilda” em latim. Uma comunidade se define por limites, normas, opiniões e crenças compartilhadas. Ao mesmo tempo em que somos teoricamente livres, estamos, na realidade, limitados pelo reconhecimento e pelo respeito aos nossos interlocutores. [Em inglês, “faculade” é college, daí o autor ter evocado o collegium, cujo plural é collegia. (N. t.)]
No fundo, as comunidades humanas (universidades inclusas) sempre se basearam numa crença comum compartilhada e, quase sempre, em alguma crença religiosa levada a sério. Em tais comunidades, é possível que haja (e provavelmente sempre haverá) dissidentes internos à tradição e estranhos de fora da tradição, mas espera-se que as normas que governam a comunidade sejam reconhecidas e respeitadas.
Através do século XX, a natureza dos collegia mudou: saímos das fundações religiosas das nossas faculdades coloniais e fomos para as normas acadêmicas da universidade moderna. Mas essas instituições não deixaram de ser governadas por normas e definidas por limites. Com o ar do tempo, elas vieram a adotar uma nova religião: a religião prometida pela “liberdade acadêmica”, a religião de John Stuart Mill, ou até a “religião da humanidade”. O que hoje chamam de woke é a nova ortodoxia religiosa, que substituiu por completo as crenças e práticas religiosas das instituições originais cujos prédios e lemas continuam o mesmo, mas cujos deuses mudaram.
Décadas atrás, quando as instituições ainda eram governadas por aqueles princípios cristãos mais antigos, os defensores da liberdade acadêmica execraram os limites à expressão, o veto a certos palestrantes, comparecimento obrigatório à capela, profissões de fé na extensão, exigências de estudos teológicos, normas morais que governam o comportamento estudantil, e assim em diante. Tiveram muito sucesso em derrubar as bases cristãs da maioria das instituições – não para terminar numa neutralidade “pura”, senão para substituir normas velhas por normas novas.
Em campi pelo país, Notre Dame inclusa, existe pressão para contratar e dar estabilidade aos professores que se conformem à nova religião woke
Hoje, testemunhamos muitos reitores da maioria das instituições acadêmicas clamando pela imposição de novos códigos de expressão, pelo banimento de certas ideias, adoração obrigatória dos novos deuses da Diversidade, Equidade e Inclusão, propostas para novas exigências centrais nessa nova “teologia”, e novas câmaras estreladas que investiguem infrações à nova teologia cometidas pelos estudantes e professores. Em campi pelo país, Notre Dame inclusa, existe pressão para contratar e dar estabilidade aos professores que se conformem à nova religião woke: argumentos amiúde defendidos por diretores e professores que há poucos anos execravam quaisquer esforços para contratar e dar estabilidade a professores católicos. Nenhuma comunidade humana pode ser neutra ou indiferente; em vez disso, precisamos perguntar qual será a fé que a anima.
As universidades constituem um tipo excepcional de comunidade. Seus membros são escolhidos: os docentes são contratados e os estudantes são itidos. O collegium das instituições de elite de ensino superior é, hoje, definido pelos compromissos sólidos advindos das aspirações millianas de “liberdade acadêmica”: progresso, transformação social, aperfeiçoamento moral. Embora pareça “neutra”, a moderna pesquisa universitária consiste em limites definidos e compromissos sólidos. Docentes que desejem se unir a tal instituição devem se conformar ao ideal de pesquisa, cuja orientação fundamental é rumo ao progresso e transformação da sociedade. Os ideais millianos agora estão contidos nos compromissos fundamentais da instituição, e com o tempo irão transformar (e já estão transformando) cada instituição ao manter-se em suas crenças mais profundas e substantivas.
Uma vez que a criação de uma comunidade “neutra” é impossível, a resposta à religião “woke” que se espalha pelas elites que governam as principais instituições da nossa nação não é invocar a "liberdade acadêmica"
A consequência é óbvia: as missões e identidades distintas em lugares como Notre Dame vão deixar de existir se continuarem a se moldar pela religião alternativa da universidade moderna – aquelas contidas nos próprios compromissos da filosofia de John Stuart Mill. Como um sapo cozido devagar, o mesmo processo que substituiu uma tradição de fé mais velha por uma nova fé em quase toda faculdade e universidade avança diariamente em Notre Dame, agora acelerado pelo seu entusiasmado abraço da nova teologia do wokismo que ora substitui, rápido, o que quer que tenha sobrado de sua identidade católica.
Uma vez que a criação de uma comunidade “neutra” é impossível, a resposta à religião “woke” que se espalha pelas elites que governam as principais instituições da nossa nação não é invocar a “liberdade acadêmica”, ou torcer pela neutralidade. Tais argumentos, defendidos com sucesso por gente como J.S. Mill há quase dois séculos atrás, nunca buscaram criar uma sociedade “neutra” ou aberta. Em vez disso, eram argumentos que continham uma série de compromissos substantivos com uma ordem social e política fundamentalmente diferente daquela governada por normas cristãs: individualismo, progressismo, materialismo, cientificismo, utilitarismo, todos conducentes à “religião da humanidade.”
Ao cabo, argumentos abstratos quanto à liberdade acadêmica são secundários quanto à questão de que tipo de comunidade, que tipo de collegium, distinguiria uma instituição católica. Um collegium no qual predomine um profundo compromisso com o ensino católico não irá limitar a liberdade acadêmica; em vez disso, irá compartilhar um entendimento dos limites corretos da comunidade – do mesmo jeito que a nova academia “woke” faz. É claro que haverá desacordos e debates, mais tais debates tomariam lugar numa cosmovisão compartilhada. Podem-se e devem-se confrontar pontos de vista de fora do collegium, mas tais perspectivas não devem ser vistas com indiferença, nem postas em pé de igualdade. A classe sacerdotal da nova religião progressista entende corretamente que uma universidade, inevitavelmente, tem uma crença predominante e uma cosmovisão. Por outro lado, os católicos mais articulados de hoje buscam erigir um escudo que protegeria gente que, segundo devemos acreditar, não faz a menor ideia do que seja a verdade.
Aqueles que pretendam promover, em particular, uma instituição robustamente católica não deveriam adotar as armas dos seus oponentes, confundindo-as com escudos. Em vez disso, um argumento totalmente católico deveria ser feito contra as injustiças, hipocrisias, decadência moral, degradação social, depravação econômica, reducionismo utilitarista, tecnologismo anti-humano e o absoluto estado vicioso da ordem atual. Não devemos nos posicionar sobre a ilusória areia movediça da neutralidade, senão sobre os sólidos fundamentos da verdade.
Patrick Deneen é professor de Ciência Política da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, e autor de "Por que o liberalismo fracassou?" (Âyiné, 2020). Este texto foi traduzido do Post Liberal Order com autorização.
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