Stephens citou Sobre a liberdade, de Mill, como o texto que exemplificava a sua posição: as pessoas deveriam ser tão livres quanto possível, desde que não causassem dano a ninguém no exercício de sua liberdade.

Eu, por outro lado, defendi que o argumento de Mill contém o núcleo da própria ideologia progressista liberal que hoje emergiu como “wokismo”. No frigir dos ovos, Mill não defende a liberdade como um bem em si mesmo, senão como meio para o progresso. O título do livro deveria ser Sobre o progresso, ou Como a liberdade leva ao progresso. A resposta: destruindo a tradição e derrubando uma ordem conservadora moldada em defesa da gente comum, em prol de uma ordem revolucionária que favorece uns poucos.

A sociedade que Mill procura criar acima de tudo é a que encoraja os indivíduos transgressores a se libertarem das normas sociais, culturais e tradicionais. Ele pega o bastão liberal onde Locke o deixara: tendo conseguido criar ordens políticas liberais que asseguram direitos individuais, a questão de Mill era que tais direitos seriam inúteis a menos que as pessoas fossem libertadas daquilo que ele chamava de “despotismo do costume”. O principal propósito de Sobre a liberdade não é assegurar a liberdade política (que ele acreditava ter sido já amplamente alcançada em países como a Inglaterra), mas a liberdade social, uma liberdade que exigia o desmantelamento dos costumes e da tradição. Isto era especialmente necessário para não-conformistas, pessoas que queriam desdenhar das normas que governam a maior parte da vida quotidiana. Entre os despotismos que detêm os não-conformistas, podemos ver claramente, hoje, os seguintes: a expectativa de que a gente venha a casar e ter filhos em algum ponto do começo da vida adulta; a ser membro duradouro de alguma congregação religiosa; e a conduzir a si própria com bom comportamento e decência.

Uma vez liberta a gente, Mill argumentava, o genuíno propósito da liberdade poderia emergir: o progresso. Enquanto a gente não estivesse suficientemente liberta do “despotismo do costume”, o progresso seria obstado. Enquanto os não-conformistas fossem impedidos de se meterem em “experimentos da vida”, as sociedades tenderiam a se replicar. As tradições ariam de uma geração para a outra.

A maioria das sociedades, escreveu ele, não tinha “nenhuma História”, propriamente falando. Isto é, as coisas aconteceram dia após dia, mas não havia nenhuma trajetória progressiva rumo à História. Só quando o “padrão” social trocasse a “tradição” pelo “experimentalismo”, teria início uma História apropriada e progressista.

Por esta razão, Mill temia que hoi polloi [os muitos, em grego] fossem o maior perigo para a liberdade genuína: sempre eram um obstáculo conservador contra o progresso genuíno. Mill era pródigo em suas críticas aos “conservadores”, chamando-os notoriamente de “partido estúpido” e argumentando em prol de votos plurais que iriam aumentar com a quantidade de graus educacionais alcançados por um indivíduo. Ademais, quanto à gente obscurantista que vivia em sociedades muito tradicionais, ele argumentava que, em tais casos, a tirania (ao menos temporária) estava justificada em nome da liberdade: "Um governante pleno do espírito de aprimoramento tem o direito de usar quaisquer expedientes que alcancem um fim. […] O despotismo é uma maneira legítima de governo quando se lida com bárbaros, desde que o fim seja o aprimoramento deles, e os meios sejam justificados por meio do sucesso nesse fim."

O que “liberais clássicos” como Bret Stephens (e Bari Weiss) abominam nos “progressistas” é o seu autoritarismo. Quão peculiar – e revelador – que Bret Stephens tenha elogiado uma obra intitulada Sobre a liberdade, aparentemente sem se dar conta de que os herdeiros de Mill haveriam de condenar a gente atrasada como uma “cesta de deploráveis” e uns “agarrados” às Bíblias. Tais liberais acreditam que podem pôr o gênio despótico de volta na garrafa defendendo a liberdade ilimitada. Isso também é algo que Mill queria, uma posição que levou a um clamor por despotismo sobre a plebe ignara. O que escapa a “líderes intelectuais” aparentemente instruídos como Bret Stephens é o fato inconveniente de que foram os frutos de sua própria filosofia que liberaram o déspota interior do liberalismo. Só uma ordem pós-liberal pode renovar o ensinamento de um tipo melhor de liberdade.

Patrick Deneen é professor de Ciência Política da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, e autor de "Por que o liberalismo fracassou?" (Âyiné, 2020). Este texto foi traduzido do Post Liberal Order com autorização.

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