As autoridades centrais da China não geraram o SARS2 mas certamente fizeram o que podiam para esconder a natureza da tragédia e a responsabilidade da China por ela. Suprimiram todos os registros do Instituto de Virologia de Wuhan e fecharam os seus bancos de dados virais. Liberaram a conta-gotas as informações, muitas das quais podem ter sido completamente falsas ou fabricadas para despistar e enganar. Fizeram o que podiam para manipular a investigação da OMS sobre as origens do vírus, e levaram os membros da comissão a um turismo infrutífero. Até agora, mostraram-se muito mais interessadas em se esquivar da culpa do que em tomar medidas necessárias para prevenir uma segunda pandemia.

3. A comunidade internacional de virologistas.

Os virologistas ao redor do mundo são uma comunidade profissional de laços frouxos. Escrevem artigos nas mesmas revistas. Vão aos mesmos congressos. Têm interesses em comum ao buscarem verbas de governos e não desejarem o fardo de mais regulamentação de segurança.

Os virologistas sabiam mais que qualquer um dos perigos da pesquisa de ganho de função. Mas o poder de criar novos vírus, e as verbas de pesquisa íveis para fazê-lo, eram tentadores demais. Eles avançaram com os experimentos de ganho de função. Fizeram lobby contra a moratória imposta às verbas federais para a pesquisa de ganho de função em 2014, e ela foi removida em 2017.

Os benefícios das pesquisas para prevenir futuras epidemias até o momento foram nulos, e os riscos, vastos. Se a pesquisa sobre os vírus SARS1 e MERS só poderiam ser feitas em um nível de segurança BSL3, certamente foi ilógico permitir qualquer trabalho com novos coronavírus no nível menor BSL2. Se o SARS2 escapou ou não de um laboratório, os virologistas ao redor do mundo estavam brincando com fogo.

O comportamento deles há muito é alarmante para outros biólogos. Em 2014, cientistas que se denominaram o Grupo de Trabalho de Cambridge pediram por cuidado ao criar novos vírus. Em palavras proféticas, eles especificaram o risco de criar um vírus como o SARS2. “Riscos acidentais com a criação de novos ‘patógenos pandêmicos em potencial’ suscitam sérias novas preocupações”, escreveram eles. “A criação laboratorial de novas cepas altamente transmissíveis de vírus perigosos, em especial, mas não limitado à influenza, apresenta riscos substancialmente maiores. Uma infecção acidental nessas condições poderia engatilhar surtos que seriam difíceis ou impossíveis de controlar”.

Quando biólogos moleculares descobriram uma técnica para mudar genes de um organismo para outro, fizeram uma conferência pública em Asilomar, em 1975, para discutir os possíveis riscos. Apesar de muita oposição interna, elaboraram uma lista de medidas restritas de segurança que poderiam ser relaxadas no futuro — e de fato foram — quando os riscos possíveis tivessem sido mais bem avaliados.

Quando a técnica CRISPR para editar genes foi inventada, os biólogos organizaram um relatório em conjunto das academias nacionais de ciências dos Estados Unidos, Reino Unido e China pedindo por comedimento ao fazer mudanças herdáveis no genoma humano. Os biólogos que inventaram a genética dirigida também trataram abertamente dos perigos de seu trabalho e buscaram envolver o público.

Poder-se-ia pensar que a pandemia do SARS2 estimularia os virologistas a reavaliar os benefícios da pesquisa de ganho de função, ainda que para incluir o público em suas deliberações. Mas não. Muitos virologistas difamam o escape de laboratório como uma teoria da conspiração e outros nada dizem. Eles se entrincheiraram por trás da muralha de silêncio da China que até agora está funcionando bem para dissipar, ou ao menos protelar a curiosidade dos jornalistas e a ira do público. Profissões que não conseguem regular a si próprias merecem ser reguladas por outros, e esse parece ser o futuro que os virologistas estão escolhendo para si mesmos.

4. O papel dos EUA ao financiar o Instituto de Virologia de Wuhan

De junho de 2014 a maio de 2019, a EcoHealth Alliance do dr. Daszak contou com uma verba do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), parte dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), para fazer pesquisa de ganho de função com coronavírus no Instituto de Virologia de Wuhan. Se o SARS2 é ou não é o produto daquela pesquisa, parece que é uma política questionável terceirizar a pesquisa de alto risco para laboratórios estrangeiros arriscados que usam as precauções mínimas de segurança. E, se o vírus SARS2 de fato escapou do instituto de Wuhan, os NIH se encontrarão na posição terrível de terem financiado um experimento desastroso que levou à morte de mais de três milhões de pessoas ao redor do mundo, incluindo mais de meio milhão de seus próprios cidadãos.

A responsabilidade do NIAID e dos NIH é ainda mais grave porque, pelos três primeiros anos da verba para a EcoHealth Alliance, havia uma moratória sobre a pesquisa de ganho de função. Por que as duas agências não impediram o financiamento federal, como ao que parece seria o exigido por lei? Porque alguém escreveu uma brecha na moratória.

A moratória barrava especificamente o financiamento de quaisquer pesquisas de ganho de função que aumentassem a patogenicidade da gripe ou de vírus MERS ou SARS. Mas uma nota de rodapé na p. 2 do documento da moratória diz que “Uma exceção da pausa nas pesquisas poderá ser obtida se o de uma agência de financiamento USG determinar que a pesquisa em questão é urgentemente necessária para proteger a saúde pública ou a segurança nacional”.

Parece que o significado disso é que o diretor do NIAID, o dr. Anthony Fauci, ou o diretor das NIH, o dr. Francis Collins, ou talvez ambos, teriam invocado a nota de rodapé para manter o dinheiro que fluía para a pesquisa de ganho de função da dra. Shi.

“Infelizmente, o diretor do NIAID e o diretor dos NIH exploraram essa brecha para criar isentar projetos que seriam sujeitados à Pausa — absurdamente afirmando que a pesquisa isentada era ‘urgentemente necessária para proteger a saúde pública ou a segurança nacional’ — dessa forma anulando a Pausa”, disse o dr. Richard Ebright em uma entrevista ao Independent Science News.

Quando a moratória terminou em 2017, ela não desapareceu, mas foi substituída por um sistema de notificações, o Quadro de Controle e Supervisão de Potenciais Patógenos Pandêmicos (P3CO), que exigia que as agências notificassem para análise qualquer trabalho perigoso de ganho de função que quisessem financiar.

De acordo com o dr. Ebright, o dr. Collins e o dr. Fauci “recusaram-se a notificar e ar adiante as propostas para análise de custo-benefício, dessa forma tornando nulo o P3CO”.

Na opinião dele, os dois diretores, ao lidar com a moratória e o sistema de notificação subsequente, “sistematicamente impediram os esforços da Casa Branca, do Congresso, de cientistas e especialistas em políticas científicas de regular as pesquisas GF [de ganho de função] em questão”.

É possível que os dois diretores precisaram levar em conta questões não óbvias no registro público, tais como problemas de segurança nacional. Talvez o financiamento do Instituto de Virologia de Wuhan, que se acredita estar envolvido com virologistas militares chineses, fornecia uma janela para a pesquisa chinesa em armas biológicas. Mas, quaisquer que sejam as outras considerações envolvidas, o resultado é que os Institutos Nacionais de Saúde estavam apoiando pesquisa de ganho de função, de um tipo que poderia ter gerado o vírus SARS2, em um laboratório estrangeiro não supervisionado que estava trabalhando em condições BSL2 de biossegurança. A prudência dessa decisão pode ser questionada, não importa se o SARS2 ou a morte de três milhões de pessoas tenham resultado dela.

Em Suma

Se o caso da origem laboratorial do SARS2 é tão substancial, por que é que mais pessoas não sabem disso? Como pode já estar evidente agora, há muitas pessoas que têm motivos para não tocar no assunto. No topo da lista estão, é claro, as autoridades chinesas. Mas os virologistas nos Estados Unidos e na Europa não têm grande interesse em dar início a um debate público sobre os experimentos de ganho de função que a sua comunidade tem buscado há anos.

Outros cientistas também não tomaram a dianteira para levantar a questão. As verbas de pesquisa do governo são distribuídas com o conselho de comitês de especialistas científicos escolhidos nas universidades. Qualquer um que balance o barco levantando questões políticas incômodas corre o risco de ter a verba não renovada e sua carreira na pesquisa encerrada. Talvez o bom comportamento seja premiado com muitas benesses que lavam o sistema de distribuição. E se alguém pensa que o dr. Andersen ou o dr. Daszak mancharam as suas reputações de objetividade científica depois de seus ataques parciais à hipótese do escape de laboratório, basta olhar o segundo e o terceiro nome nessa lista de agraciados com uma verba de U$82 milhões anunciada pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas em agosto de 2020.

O governo americano tem um estranho interesse em comum com as autoridades chinesas: nenhum deles está disposto a chamar atenção para o fato de que o trabalho com coronavírus da dra. Shi foi financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Pode-se imaginar a conversa de bastidores em que o governo chinês diz que “Se essa pesquisa era tão perigosa, por que vocês a financiaram, e dentro do nosso território?” Ao que o lado dos Estados Unidos poderia replicar que “Parece que foram vocês que deixaram escapulir. Mas precisamos mesmo ter essa conversa em público?”

O dr. Fauci é um membro de longa data do funcionalismo público que serviu com integridade sob o presidente Trump e retomou a liderança na istração Biden para lidar com a epidemia de Covid. O congresso, sem dúvida compreensivelmente, pode não ter muita gana de lhe dar uma reprimenda pública pelo aparente lapso de julgamento ao financiar pesquisa de ganho de função em Wuhan.

A essas muralhas impenetráveis de silêncio deve-se adicionar o silêncio da mídia dominante. Até onde sei, nenhum grande jornal ou canal de televisão já deu aos leitores uma matéria aprofundada sobre a hipótese do vazamento laboratorial, como a que o leitor acaba de ler aqui, embora alguns tenham publicado editoriais breves ou colunas de opinião. Poder-se-ia pensar que qualquer origem plausível de um vírus que matou três milhões de pessoas seria digna de uma investigação séria. Ou que a sabedoria de continuar as pesquisas de ganho de função, independente da origem do vírus, seria digna de alguma perscrutação. Ou que o financiamento de pesquisa de ganho de função pelos NIH e NIAID durante uma moratória sobre tais pesquisas pediria por investigação. O que explica a aparente falta de curiosidade da mídia?

O omertà dos virologistas é uma razão. Repórteres de ciência, diferente dos de política, têm pouco ceticismo inato às motivações de suas fontes; a maioria vê o seu papel como na maior parte ar adiante a sabedoria dos cientistas às massas ignaras. De forma que, quando as suas fontes não ajudam, esses jornalistas ficam perdidos.

Outra razão, talvez, é a migração de boa parte da mídia na direção da esquerda do espectro político. Porque o presidente Trump disse que o vírus tinha escapado de um laboratório de Wuhan, os editores deram pouco crédito à ideia. Juntaram-se aos virologistas ao considerar o escape laboratorial uma teoria da conspiração dispensável. Durante a istração Trump, não tiveram problemas em rejeitar a posição dos serviços de inteligência de que o escape de laboratório não poderia ser descartado. Porém, quando Avril Haines, diretora da Inteligência Nacional do presidente Biden, disse a mesma coisa, ela também em geral foi ignorada. Isso não é para dizer que os editores deveriam endossar a hipótese do vazamento laboratorial, mas meramente que eles deveriam ter explorado a possibilidade de forma completa e justa.

As pessoas ao redor do mundo que muitas vezes aram seu tempo confinadas em casa no ano ado poderiam desejar uma resposta melhor do que a mídia lhes deu. Talvez alguma surja a tempo. Afinal, quanto mais meses arem sem uma teoria de emergência natural que ganhe alguma migalha de evidência em seu apoio, menos plausível ela parece. Talvez a comunidade internacional de virologistas virá a ser vista como um guia falso e com interesses pessoais. A percepção do senso comum de que a eclosão de uma pandemia em Wuhan poderia ter algo a ver com um laboratório de Wuhan fabricando novos vírus de perigo máximo em condições de segurança mínimas poderia no fim afastar a insistência ideológica de que tudo o que Trump disse não pode ser verdade.

E assim, que comece o acerto de contas.

Nicholas Wade

30 de abril de 2021

Agradecimentos

A primeira pessoa que levou a sério as origens do vírus SARS2 foi Yuri Deigin, um empreendedor da biotecnologia na Rússia e no Canadá. Em um longo e brilhante ensaio, ele dissecou a biologia molecular do vírus SARS2 e levantou, sem endossar, a possibilidade de que ele pudesse ter sido manipulado. O ensaio, publicado em 20 de abril de 2020, forneceu um mapa para qualquer um que quisesse buscar entender as origens do vírus. Deigin incluiu tanta informação e análise em seu ensaio que alguns duvidaram que poderia ser o trabalho de um único indivíduo e sugeriram que alguma agência de inteligência deveria ser o real autor. Mas o ensaio é escrito com mais leveza e humor do que eu suspeitaria encontrar em relatórios da CIA ou da KGB, e não vejo razão para duvidar que o dr. Deigin é o único e hábil autor.

Seguindo os os de Deigin vieram muitos outros céticos quanto à ortodoxia dos virologistas. Nikolai Petrovsky calculou o quão forte é a ligação do vírus SARS2 aos receptores ACE2 de várias espécies e descobriu, para surpresa dele próprio, que o vírus parecia ser otimizado para o receptor humano, levando-o a inferir que ele poderia ter sido gerado em um laboratório. Alina Chan publicou um artigo mostrando que o SARS2, desde que apareceu, era muito bem adaptado às células humanas.

Um dos muito poucos cientistas do establishment a questionar a rejeição absoluta dos virologistas ao vazamento laboratorial é Richard Ebright, que há muito tempo alerta contra os perigos da pesquisa de ganho de função. Outro é David E. Relman da Universidade de Stanford. “Embora opiniões fortes sejam abundantes, nenhum desses cenários pode ser descartado ou aceito com confiança com os fatos disponíveis hoje”, escreveu ele. Parabéns também ao Robert Redfield, ex-diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, que disse à CNN em 26 de março de 2021 que a causa “mais provável” da epidemia “veio de um laboratório”, pois ele duvidava que um vírus de morcego pudesse se tornar um patógeno humano extremo de um dia para o outro, sem levar um tempo para evoluir, como parecia ser o caso com o SARS2.

Steven Quay, um médico pesquisador, aplicou ferramentas estatísticas e de bioinformática em explorações engenhosas da origem do vírus, mostrando, por exemplo, como os hospitais que recebiam pacientes no início se agrupavam ao longo da linha nº 2 do metrô de Wuhan que conecta o Instituto de Virologia em uma ponta ao aeroporto internacional na outra, a esteira rolante perfeita para distribuir o vírus do laboratório para o mundo.

Em junho de 2020, Milton Leitenberg publicou uma pesquisa preliminar sobre as evidências favorecerem o vazamento laboratorial da pesquisa de ganho de função no Instituto de Virologia de Wuhan.

Muitos outros contribuíram peças importantes para o quebra-cabeças. “A verdade é a filha”, disse Francis Bacon, “não da autoridade, mas do tempo”. O esforço de pessoas como essas acima é o que faz isso acontecer.

*Nicholas Wade é escritor e repórter veterano de ciência que atuou no New York Times entre 1982 e 2012. Texto original em inglês.

Texto traduzido pelo geneticista Eli Vieira. Para uma versão resumida de alguns desses fatos, confira o artigo do tradutor de novembro de 2020 aqui na Gazeta do Povo.

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