Os embates psicológicos que Leo Kall tem consigo mesmo são poderosos e profundos, fica claro que a escrita de Kallocaína só poderia ter saído de uma alma que se sentia também aprisionada, frustrada, traída, que, ainda que consciente da realidade de uma liberdade inata ao seu ser, não conseguia usufruir do seu frescor e do bater das suas asas. Assim se sentia a poeta sueca: apesar de conhecer a possibilidade da autonomia, parecia que estar cada vez mais longe dela. 515d2c
Na narrativa, Kall desencadeia então uma série de diálogos psicológicos memoráveis, os fez na autocensura às suas tentações de ser um pouco livre à revelia das regras do Estado. “De onde vinha esse infeliz questionamento dentro do meu ser”?, pergunta diante da desconfiança de traição de sua esposa, e das inumeráveis tentativas frustradas de torná-la sensível e emocional às suas descobertas ‒ emoções são traições à geométrica perfeição da ideologia do Estado.
Talvez o diálogo mais marcante da obra seja a descoberta “imoral” do cientista de que há uma consciência pessoal no homem, de uma espécie de brisa inata de liberdade que brota naturalmente dos indivíduos. Aliás, essa descoberta de que realmente há “indivíduos”, que tal termo não é fruto de um obscurantismo reacionário ou de uma turba de atrasados políticos ‒ aqueles que, na obra, são retratados como os “viajantes rejeitados do deserto” ‒ é o que sempre rompe o último selo do conformismo psicológico dos que se revoltam contra tiranias. O homem não é massa, o homem é indivíduo.
A narrativa se faz instigante e ativa pelas constantes rupturas de expectativa que ocorrem abruptamente ‒ ainda que ao ler estejamos constantemente esperando por essas ocasiões. Fato é que elas são impossíveis de ser previstas, a cada página virada uma expectativa se renova.
Ao descobrir que a realidade pode ser mais do que aquilo que o Estado mostra, que há uma liberdade feita manancial em cada pessoa, Kall não explode imediatamente em busca de revoluções ou protestos, como diria o poeta português Valter Hugo Mãe em 'O filho de mil homens': “para dentro do homem o homem cai”. E Kall caía para dentro de si em reflexões, desesperos, planos e filosofias. A cada descoberta, a realidade, para além das cortinas ideológicas do Estado, convidava-o para fora daqueles muros subterrâneos. E pararei a descrição da trama por aqui, a fim de não dar mais spoilers.
Como já adiantamos, não parece ser mera coincidência do destino literário a kallocaína nos lembrar do soma de 'irável Mundo Novo', muito menos o caráter desbravador de Winston Smith, de '1984', casar-se perfeitamente com os temperamentos e trejeitos de Leo Kall. O que a sueca faz de diferente dos demais autores de distopias de seu tempo, entretanto, é destrinchar os caminhos internos da consciência dos prisioneiros do totalitarismo. Aquilo que Alexander Soljenítsin fez em um relato autobiográfico no primoroso e assustador 'Arquipélogo Gulag', Karin Boye fez em forma de romance, não menos primoroso, em 'Kallocaína'. Em ambos os relatos, temos indivíduos que, aos poucos, despertam da ilusão asfixiante de uma ideologia igualitarista e, tomando consciência da caixa que os aperta em mentiras políticas e psicologias ditatoriais, tentam encontrar uma viela para libertação.
A descoberta verdadeiramente angustiante de que aquilo que sempre se acreditou ser a verdade indiscutível na verdade não a de produtos enganosos de déspotas e acadêmicos encastelados. A vertigem que dá ao notarmos que a abnegação de nossa obediência às normas era, antes de mais nada, o virar da chave que nos trancava em nossas celas psicológicas... Pois bem, eis o que Bye trata com maestria absurda em 'Kallocaína'. Com essa obra, Boye se torna, para mim, uma das mais competentes apologistas da maturidade de consciência, talvez uma das mais habilidosas defensoras da sanidade política da literatura mundial.
Kallocaína foi lançada originalmente em 1940 ‒ como já dito anteriormente ‒, e Boye se suicidou apenas um ano após, em 24 de abril de 1941, ingerindo uma quantidade cavalar de remédios para dormir. Obviamente, como é notável, jamais se recuperou da depressão causada pelos embates de sua alma e do assombro político que a cercava.
Assim sendo, parece-me que a obra resenhada foi mais que um romance, talvez guarde a sua característica de autobiografia. O impressionante é o fato de que a realidade que figurava na alma da poeta mostrou de forma crua e profunda o que cá fora aríamos com as ditaduras que ensanguentaram o planeta. 'Kallocaína' foi composta para pessoas que buscam a maturidade política e mental; ela foi escrita para aqueles que querem entender o que uma ideologia totalitária pode engendrar em uma alma imatura, para mostrar quantas marcas indeléveis ela pode cravar em nossas consciências.
Infelizmente, a obra encontra-se esgotada, o que já era esperado, já que a editora Carambaia lançou-a sob o selo “limitada” — edições que já nascem com a certeza que acabarão e dificilmente serão reimpressas, pelo menos não tão cedo. Minha edição é a de número 689 de uma tiragem de 1.000. Obviamente a obra já começa a figurar naqueles preços exorbitantes de “obras sumidas” ‒ a lei de oferta e demanda é implacável no mundo livreiro. Pois bem, quem sabe a Carambaia tenha mais uma atitude de extrema bondade civilizacional e reimprima a obra. É mais do que um preciosismo de um amante de livros, creio ser antes uma questão de sanidade. Esse é um daqueles livros que um bom homem não pode morrer sem ler.
VEJA TAMBÉM: