“O que você jogou lá dentro!?”

Ela ainda não está falando. O sinal muda para verde, não tem ninguém atrás de nós e apenas ficamos parados.

O malfeitor começa a piscar a seta de forma muito contida, faz uma curva devagar e segue em direção a uma rua paralela à velocidade de, sei lá, uns dez quilômetros por hora. Se fosse possível um carro parecer envergonhado, este parecia.

“Querida, o que você jogou lá dentro, me diz?”

Ela deixa escapar um sorrisinho maligno. “Um pirulito de uva.” Fico impressionado com sua entonação feroz e ivo‑agressiva.

“… Você é um ser humano tão ruim e horrível que algo de muito errado deve ter acontecido na sua infância, e talvez este pirulito ajude a corrigir esse problema só um pouquinho.”

Esse cara vai pensar duas vezes antes de mexer de novo com a gente. Fiquei cheio de orgulho e amor.

E o segundo exemplo: em meados da década de 1960, um golpe militar derrubou o governo da Indonésia, instaurando a ditadura de [Hadji Mohamed] Suharto, a “Nova Ordem”, que durou 30 anos.

Na sequência do golpe, o governo patrocinou o expurgo opositores e cidadãos de etnia chinesa, resultando em meio milhão de mortos. Execuções em massa, tortura, vilarejos incendiados com seus habitantes dentro.

O escritor V. S. Naipaul conta em seu livro ‘Entre os Fiéis: Irã, Paquistão, Malásia, Indonésia’ que, quando estava na Indonésia, ouviu rumores de uma situação absurda: sempre que um grupo paramilitar chegava para exterminar todas as pessoas em um determinado vilarejo, trazia consigo uma tradicional orquestra de gamelão [conjunto de música tradicional da região].

Mais tarde, Naipaul encontrou um impenitente veterano de um massacre e lhe perguntou sobre o boato.

“Sim, é verdade, nós levávamos músicos de gamelão, cantores, flautas, gongos, o serviço completo.”

Por quê? Por que vocês fariam isso? O homem pareceu perplexo e deu o quelhe parecia uma resposta óbvia: “Bem, para tornar tudo mais bonito”.

Flautas de bambu, incêndio em vilarejos, a balística de pirulitos do amor materno.

Nosso trabalho agora está delimitado: tentaremos entender o virtuosismo com que nós, seres humanos, nos machucamos ou cuidamos uns dos outros, e quão interligada é a biologia por trás de ambas as ações.

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