Antes disso, no seu (agora defunto) blog, havia repelido a acusação de que liderava uma espécie de máfia. “Unanimidade? Nunca, em nenhum período da minha vida, experimentei tal status. Não estou preocupado com isso: nem a desejo nem a temo, a unanimidade. E, pensando bem, até Machado de Assis recebe reiteradas estocadas (às vezes bem violentas e injustas) de Millôr Fernandes”.

A Máfia do Dendê evolui

Tognolli e Lobão não foram os únicos, nem os primeiros, a apontar o dedo para Caetano e Gil. O cantor Fagner já havia detectado a busca dos dois pelo protagonismo, o que tirava o espaço de quem não era da mesma turma. "Ele se acha o dono da verdade", relembrou o cantor cearense em entrevista a Marcelo Tas, na TV Cultura, em 2020. Muito antes de todos eles, Paulo Francis já havia comprado uma briga com Caetano e Gil ao criticar a atenção desproporcional recebida pelos baianos, ao que recebeu uma resposta impublicável de Caetano.

Mas o episódio de Maria Bethânia mostrava que as coisas estavam mudando. Dentro das redações, a figura de Caetano e seu grupo já não era mais tão reverenciada. Além disso, a internet já mostrava ser uma força poderosa em favor da diversidade de opiniões — inclusive para criticar a distribuição de recursos públicos a artistas consagrados.

Então a Máfia do Dendê evoluiu. E a mulher de Caetano, a produtora cultural, Paula Lavigne, é uma figura central nisso. Apelidada de "general" e autoproclamada“mandona” e “hiperativa”, Lavigne tomou a dianteira e ou a arregimentar artistas para a militância política das mais diversas causas — todas à esquerda. Paula Lavigne ainda tinha aparelho nos dentes quando conheceu Caetano, 27 anos mais velho. Ela tinha 13; ele, 40. Desde então, com algumas idas e vindas, estão juntos.

Em 2017, ela e um grupo de artistas, vagamente liderados por Caetano, fundaram o grupo 342 Artes para protestar contra a “censura” imposta contra o Queermuseu. A exposição, frequentemente visitada por crianças em um centro cultural de Porto Alegre, exibia figuras sexualmente explícitas. O 342 tem a participação de figuras como Fernanda Montenegro, Letícia Sabatella, Camila Pitanga, Lázaro Ramos e Wagner Moura.

Instalado no Rio de Janeiro, o movimento faz visitas frequentes a Brasília e grava vídeos, muitos constrangedores, com tom pungente, com uma estética que remete aos anos 1970. E as pautas são muitas. A favor da eleição de Baleia Rossi (MDB-SP) como presidente da Câmara. Contra o desmatamento da Amazônia. A favor da exposição em que crianças interagiam com um adulto nu em um museu estatal. Contra as ações policiais em favelas no Rio de Janeiro. A favor de uma ocupação irregular promovida pelo MTST, de Guilherme Boulos, em um terreno em São Bernardo do Campo (SP).

No mês ado, parte foi a Brasília — com Nando Reis e Mariana Ximenes, dentre outros artistas, para pedir a rejeição de medidas que podem, na  visão deles, prejudicar o meio ambiente. Liderados por Caetano, que chegou a cantar no Senado Federal, eles entregaram uma carta às autoridades. Dentre as entidades signatárias, está a Setorial de Direitos Animais do PT.

Paula Lavigne também já aturou em outros fronts corporativistas. Ela é presidente da “Associação Procure Saber”, que, dentre outras coisas, fez lobby a favor da proibição de biografias não-autorizadas, ou seja: censura. O grupo atua ainda como uma espécie de sindicato e com frequência atua para distribuições mais generosas dos recursos do Ecad, a entidade que cobra as taxas de execução de músicas até mesmo em batizados.

Influência em queda

Como cidadãos de um país democrático, os artistas têm direito de expressar suas opiniões. Mas a premissa do 342 Artes é diferente: é como se a fama do ado lhes garantisse um direito automático a opinar sobre todos os assuntos, sempre com uma aura de que carregam a pureza de intenções contra políticos truculentos e ignorantes. Nesse sentido, Bolsonaro é o vilão ideal. Paula Lavigne o acusa de ter sido eleito por causa do “ódio” e do “fundamentalismo” e de querer “destruir a cultura”. "Eu não tenho amigo bolsominion", disse ela em entrevista ao jornal O Globo no ano ado.

Muito da influência da Máfia do Dendê já parece ter se exaurido conforme a influência artística de Caetano e Gil diminui. O lançamento mais recente de Caetano Veloso teve 236.000 visualizações no seu canal no YouTube — em quatro meses. Caetano está mais perto de Jorge Vercillo (134.000 visualizações em seu vídeo mais recente, publicado dois meses atrás), do que para artistas sertanejos de segunda linha. Matheus e Kauan, por exemplo, lançaram um novo vídeo há duas semanas e já têm 6,1 milhões de visualizações.

Além disso, a influência de Caetano sobre as redações de jornal é muito menor, e — mais importante — a influência dos cadernos culturais hoje está muito próxima do zero. O o às gravadoras, antes essencial, hoje é apenas um dentre muitos caminhos: qualquer artista pode produzir e lançar as próprias músicas gratuitamente na internet. Por fim, a torneira dos recursos públicos para projetos de artistas famosos não é tão generosa, e o grupo político no poder não anda do mesmo lado da rua de Caetano e Gil.

O próprio grupo 342 Artes tem meros 7 mil seguidores no Twitter e 4,8 mil inscritos no YouTube. Mas a influência dos baianos continua grande em pelo menos um aspecto. Caetano não tem os views, mas ele e seu grupo têm o que os views não podem dar: respeitabilidade. Os convescotes na casa de Paula Lavigne já foram frequentados por figuras como Joaquim Barbosa, Marina Silva, Ciro Gomes e Guilherme Boulos.

Artistas mais jovens, e mais populares que Caetano e Gil, podem ter os números maiores. Mas nem sempre possuem a imagem de artista engajado e bem-relacionado. Talvez isso explique porque, recentemente, até mesmo a cantora Anitta tenha se juntado ao grupo. Antes relutante de expressar suas opiniões políticas, ela agora é figura frequente nas publicações do 342 e ou a atacar o governo com frequência. Para alegria da primeira-dama da Máfia do Dendê. “Quando um artista que nunca se pronunciou se pronuncia, a gente comemora”, disse Paula Lavigne a O Globo no ano ado.

Talvez Claudio Tognolli estivesse certo quando afirmou, mais de duas décadas atrás: “O pagamento da Máfia do Dendê não é em dinheiro, é com uma aura de glamour e convívio.”

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