Uma dessas proposições, elaborada pelos pesquisadores Naercio Menezes Filho e Bruno Komatsu, professores do Insper, defende a distribuição de um valor maior, priorizando as famílias pobres com crianças, em vez de repartir pequenos valores para um público mais amplo. “Apesar de o PBF [programa Bolsa Família] ter uma focalização bem melhor do que a do auxílio emergencial em relação ao pagamento do benefício de pessoas não elegíveis, ele não é suficiente para tirar as crianças da pobreza. Apenas evita a pobreza extrema”, observam.
Nesse sentido, o desafio da reformulação do programa de transferência de renda é combinar as boas partes do que já existe e eliminar as ruins. É isso que permitiria ampliar o valor de transferências para famílias com crianças.
Para Naercio Menezes Filho, investir na primeira infância agora ajudaria a resolver muitos problemas crônicos do país, como a baixa produtividade, alta informalidade e elevado porcentual de jovens que não trabalham e não estudam. Essas condições são reflexos da falta de oportunidades a que estão submetidas as crianças mais pobres.
"As crianças de famílias pobres vão ter muita dificuldade na vida e acabamos as perdendo. Aí gasta com construção de cadeia, hospital e poderíamos evitar isso. Se a gente quiser melhorar o país, temos que, a partir desta geração, dar condições de vida para as crianças", argumentou em entrevista à Gazeta do Povo.
Só que esse é um trabalho de construção demorado e os efeitos serão sentidos dali a pelo menos duas décadas, quando as crianças de hoje terão o a educação continuada e emprego formal.
"O Bolsa Família não é suficiente. Você tem que transferir renda para a família pelo menos comprar comida, transporte, alimentação, para a criança se desenvolver com tranquilidade em um ambiente estável", diz o pesquisador.
Para avaliar as melhores alternativas para criação de um benefício voltado à primeira infância, os pesquisadores levaram em conta que o Brasil tem 12,8% de famílias pobres e que, entre as famílias com crianças de até seis anos, a proporção de pobres sobe a 24,5%. A partir daí, simularam diferentes hipóteses para reduzir esses percentuais.
Foram avaliados três cenários de distribuição de renda (R$ 400, R$ 800 e R$ 1.200 por mês), simulando benefício por família ou por criança, considerando diferentes abrangências do programa (universal ou focalizado em quem já recebe ou não o Bolsa Família) e ainda se esse auxílio substituiria o Bolsa Família ou não.
Dentre todas as simulações, a que mostrou melhor relação entre custo total do programa e efetividade para redução de pobreza geral e infantil foi o pagamento de uma bolsa mensal de R$ 800 por criança de até 6 anos de famílias pobres que já estão na base de cadastro do Bolsa Família. “Se o PBF fosse aperfeiçoado, chegando a todas as famílias pobres e retirando do programa as que não o são, (…) o gasto se torna mais eficiente no sentido de reduzir a pobreza”, observam.
As projeções apontam que a transferência mensal de R$ 800 por criança reduziria a pobreza infantil para 5% e a geral para 9% ao custo de R$ 48 bilhões por ano – ou R$ 77 bilhões de custo total, o que inclui as novas transferências e a manutenção do Bolsa Família, que continuaria sendo pago às famílias pobres sem filhos.
“Assim, com esse valor poderíamos praticamente eliminar a pobreza infantil no Brasil e manter as condicionalidades existentes no PBF, que se mostraram importantes para melhorar a educação e saúde dos mais pobres”, escreveu Menezes Filho em artigo no "Valor Econômico".
Embora tenham simulado transferências com valores muito elevados, os pesquisadores ponderam que um custo muito alto poderia inviabilizar o programa. "Você pode acabar gastando muito com famílias que não são pobres. O auxílio emergencial tem uma proporção alta de família não pobres que recebem ajuda", avalia Menezes Filho. Além disso, nem sempre o valor mais elevado é o mais eficaz para a redução da pobreza.
Para bancar os custos, eles sugerem o fim de abatimentos do Imposto de Renda para gastos com educação e saúde e a tributação da renda independentemente de fonte – o que inclui lucros e dividendos, juros sobre capital próprio, renda de trabalho e rendimento de empresas que estão no Simples. Algumas dessas propostas, como o fim das deduções de despesas médicas e educacionais, já foram consideradas pelo próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, ao comentar as fontes de recursos para o Renda Brasil.
A ideia dos professores chamou a atenção da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que transformou o tema em projeto de lei.
O PLP 213/2020 estabelece que famílias vulneráveis com crianças de até seis anos receberão um auxílio mensal de R$ 800 durante os três primeiros anos, com reduções progressivas de R$ 100 até a criança completar seis anos. A proposta limita o número de benefícios que podem ser acumulados por família (até três) e prevê gatilhos para redução do benefício, caso essa família ultrae o limite de renda mensal per capita.
A sugestão é que a renda básica da primeira infância alcance os mesmos beneficiários do Bolsa Família que já recebiam a parcela variável concedida para quem tem filhos nessa faixa etária. Por isso, as condicionalidades para concessão do auxílio seriam mantidas: frequência escolar mínima, acompanhamento de saúde e acompanhamento nutricional.
“Sabemos que a pobreza afeta desproporcionalmente as crianças. E sabemos também que os primeiros anos de vida são cruciais para a formação de um indivíduo”, escreveu a senadora na justificativa da proposta.
Ela cita pesquisas conduzidas pelo economista James Heckman, ganhador de um Nobel de Economia, que mencionam o retorno para a sociedade de investimentos na primeira infância. Em um desses modelos, a cada dólar investido na primeira infância há um retorno anual de 8% a 10% no futuro, já descontada a inflação, contra 5% de aplicações no mercado financeiro. A senadora afirma que essa taxa de retorno pode chegar a 14% ao ano.
Para viabilizar a proposta, Eliziane propõe a criação ou modificação de normas tributárias para a parcela mais rica da população. A primeira é a cobrança de um Imposto sobre Grandes Fortunas, que teria uma alíquota de 2% incidindo sobre patrimônios líquidos superiores a R$ 20 milhões.
Na sequência, viria a tributação sobre distribuição de lucros e dividendos a acionistas de empresas, com alíquota de 15%. Para compensar, seriam reduzidas as alíquotas da tabela de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) – a alíquota-base aria de 15% para 12,5% e a adicional, de 10% para 7,5%.
Por fim, estados e Distrito Federal poderiam aumentar as alíquotas do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), que incide sobre heranças. O Senado revisaria o valor máximo, que hoje é de 8%, em até 18 meses.
Hoje as ações de assistência social promovidas pela União são mais voltadas para os idosos – basta mencionar a Previdência e o Benefício de Prestação Continuada, que representam gastos públicos mais elevados – e há uma discussão crescente sobre a melhor forma de alocar esses recursos.
Os pesquisadores Naercio Menezes Filho e Bruno Komatsu defendem quatro pontos para justificar a focalização da transferência de renda para famílias com crianças pequenas:
No ano ado, o Ipea propôs a criação de um sistema de proteção social, partindo da fusão de programas que já existem, para incluir 17 milhões de crianças em situação de vulnerabilidade e que não recebem auxílios do governo federal. A proposta traz algumas semelhanças com o Renda Brasil, já que prevê a integração do Bolsa Família, o salário-família, o abono salarial e a dedução por dependente no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Os pesquisadores Sergei Soares, Leticia Bartholo e Rafael Guerreiro Osório sugerem a junção dessas políticas por avaliar que o sistema de proteção atual é uma “colcha de retalhos”, com muitos buracos e sobreposições.
A integração desses programas possibilitaria um orçamento de R$ 52,8 bilhões para ações de proteção à infância e enfrentamento da pobreza. Seriam pagos três tipos de benefícios:
Também em 2019, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou que os parlamentares trabalhariam em uma agenda social. Um dos projetos, o PL 6072/2019, abraçado por Tabata Amaral (PDT-SP), previa uma atualização do Bolsa Família, com a criação de um referencial de pobreza com programação de atualização monetária e correção automática do valor do benefício.
A proposta privilegia a primeira infância, já que famílias com crianças pequenas receberiam um benefício maior. Para isso, a previsão é de um incremento de até R$ 10 bilhões ao ano no orçamento do programa. O PL foi remetido a uma comissão especial que discutiria o Bolsa Família em fevereiro deste ano e está parado.
O Brasil já tem uma ação voltada à primeira infância: o Criança Feliz é considerado o maior programa de acompanhamento familiar para desenvolvimento infantil do mundo. Seu foco está justamente nas crianças de até 6 anos, que recebem visitas para acompanhamento. Aos pais são oferecidos instrumentos para que estimulem o desenvolvimento cognitivo, emocional e psicossocial dos filhos.
A ação começou em 2017, a um custo anual de R$ 207 milhões. Em 2019, o recurso para o programa era de R$ 377 milhões, e já havia possibilitado o atendimento a mais de 800 mil crianças. A meta do Ministério da Cidadania era de chegar a 2022 com 3 milhões de beneficiários. Até março de 2020, 2.927 cidades faziam parte do programa e outras 1,2 mil eram consideradas aptas. A metodologia da ação, que consistia em visitas, precisou ser adaptada por causada pandemia da Covid-19.
Naercio Menezes Filho, do Insper, avalia que o Criança Feliz é uma excelente iniciativa, alinhada com os programas mais modernos da área, porque combina visitas domiciliares e capacitação dos pais para interagirem com as crianças. Mas pode melhorar, combinando outras ações em um só pacote, como ações de transferência de renda e de saúde, a exemplo do que já é feito no programa Saúde da Família. "São várias políticas separadas, com públicos diferentes. Precisamos fazer algo coordenado", diz o especialista.
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