Histórias da “Freguezia do Iguassú”

No fim do século XIX, Araucária ainda se chamava Freguezia do Iguassú — na grafia da época — e era um distrito de São José dos Pinhais. Como explica Maske, o estado tinha uma quantidade menor de escravos do que em províncias como Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Ainda assim, o mercado escravocrata existia por aqui.

Para o professor, ainda que em menor número do que em outras províncias, a mão de obra escrava foi responsável por boa parte do desenvolvimento populacional do estado. Nesse período, o Paraná era majoritariamente rural, com fazendas de produção pecuária e de erva-mate. “Muitas das localidades que aparecem nos registros ainda existem”, explica o funcionário do 1.º Tabelionato, Luiz Antônio Machado Ferreira. “Alguns desses locais são os mesmos. Bairros como Onça e Tietê são rurais até hoje”.

Ferreira é um dos poucos que consegue ler com facilidade os escritos do fim do século XIX. Segundo ele, o segredo é o tempo de experiência: há 37 anos ele trabalha com cartórios e se acostumou com o linguajar típico do ofício — que mudou muito pouco nesses quase 150 anos. “Já me acostumei com a letra e a linguagem de cartório, que segue mais ou menos um padrão desde aquela época”, diz.

E foi assim que ele encontrou várias histórias, seja de outras crianças vendidas ou de famílias de escravos que eram deixadas como herança em testamento. Em algumas páginas é possível encontrar escrituras de escravos que compraram sua própria liberdade. O preço varia bastante, indo de 200 mil réis até um conto — em uma conversão aproximada, entre R$ 24,6 mil e R$ 123 mil na moeda de hoje.

Em um dos livros, uma exceção: um senhor libertou uma escrava sem cobrar nada por isso. Em outro, um casal libertou uma escrava para que ela gozasse de sua liberdade “como se ventre livre fosse” — contanto que ela os servisse enquanto fossem vivos.

Entre as dezenas de escravos que aparecem nesses documentos, alguns chamam a atenção. É o caso de Ignácio, descrito como um escravo branco, evidenciando a miscigenação que já existia na região dois séculos atrás. “Escravos brancos não são comuns. Talvez ele fosse pardo bem claro, mas filho de escravo — e é isso que vai determinar”, afirma o Wilson Maske, professor de História da PUR.

""Livros sofrem com desgaste após 150 anos (Foto: Durval Ramos / Gazeta do Povo)

Preservação

O problema é que o tempo é implacável e alguns desses livros já começam a sofrer o peso de seus mais de 150 anos. O primeiro volume, por exemplo, está com as páginas soltas e alguns rasgos. Os demais estão bem preservados, embora com as folhas amareladas e algumas marcas de traça aqui e ali. E, apesar de bem guardados nos arquivos do cartório, eles precisam ar por um processo de restauro para manter essas histórias vivas.

“A gente trata esses livros como algo de cartório”, diz o responsável pelo 1.º Tabelionato de Araucária. “O cartório é um órgão do estado do Paraná e é preciso de uma autorização judicial para tirar esses livros daqui — mesmo que ele tenha 150 anos”. Segundo Martini, ele não tem ideia de quem procurar para fazer a recuperação desses documentos e que, por ser uma instituição pequena, o cartório não tem condições de arcar com esse custo. “Por nós, não teria problema algum em ele ser restaurado ou mesmo levado para um museu. Só que isso não depende da gente”.

Enquanto isso não acontece, ele diz que o cartório está aberto para qualquer pessoa que queira conhecer os arquivos e ver um pedaço da História que se esconde em seus armários. “Somos uma equipe pequena, mas estamos abertos para quem quiser conferir”, afirma Martini.

Para Wilson Maske, é importante que os livros sejam bem acomodados e estejam organizados, o que pode ajudar pesquisadores no futuro. “Mas é propriedades deles e essa disponibilidade deve partir deles”, destaca o doutor em História. “O importante é que haja uma preocupação em preservar e que exista a possibilidade de que pesquisadores tenham o, para que possamos conhecer um pouco mais dessas histórias”.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros