Para o pesquisador da Embrapa Luís Gustavo Barioni, a injustiça contra os países produtores de alimentos na contabilidade climática não existia antes do Acordo de Paris, porque as metas e compromissos envolviam apenas países ricos, do chamado Anexo I do protocolo anterior, de Kyoto. Agora, o cenário mudou. Pela regra atual, onde se emitiu carbono, deve ser lançado o débito correspondente. “Assim, você favorece países que produzem petróleo, que emitem muito pouco no processo de extração e transporte em relação às emissões do próprio produto. Veja só: estourou a guerra da Ucrânia. Se falta energia, os países exportadores de petróleo aumentam suas exportações e não comprometem suas metas. Com a mesma guerra, o país que provê alimentos é potencialmente penalizado pelas metas de emissões”, compara.
Por enquanto, essa contabilidade enviesada ainda não implementou seu custo financeiro. É a hora de chamar o assunto à discussão, avisa Barioni. “O que está sinalizado é que em um ou dois anos isso entre em vigor. Ainda é tempo de debater, ainda está em negociação”, completa.
A suposta distorção que ocorre nos inventários dos países quanto às suas emissões não se repete nas cadeias produtivas e industriais. Nestes casos, a técnica aplicada envolve a avaliação do ciclo de vida do produto. A pegada de carbono é calculada conforme os insumos utilizados em todo o processo, até chegar ao consumo.
A tese da suposta injustiça na contabilidade climática entre países, no entanto, é rebatida por Oswaldo dos Santos Lucon, climatologista e um dos autores das Normas para Inventários Nacionais de Emissões do Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), organismo ligado à ONU. Lucon foi também coordenador do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, mas deixou o cargo subitamente no início dos trabalhos da COP26, em Glasgow, no ano ado, alegando não ter conseguido encaminhar questões que julgava importantes. Para Lucon, o Brasil, na verdade, “tem muito a perder se mexer nesse vespeiro”.
“Há um movimento que afirma que a cultura da cana empurra a soja, que empurra o gado, que empurra o desmatamento. É a chamada mudança indireta no uso do solo, em inglês ILUC. Já ei muitas horas defendendo o Brasil nessas negociações”, sublinha, sugerindo que uma revisão dos pesos e medidas pode trazer mais prejuízos que benefícios.
Lucon disse não ver nada de errado na contabilidade nem penalização a qualquer país. “Se nossas atividades agropecuárias emitem, isso é factual. Se veículos convertem gasolina em CO2, também. Países produtores de petróleo e carvão são penalizados na medida em que a externalidade (custo ambiental) do carbono integra a cadeia de valor e seus produtos perdem a atratividade – que já é o caso de termelétricas a carvão e a óleo. Emissões ao longo da cadeia são chamadas de indiretas, e também são citadas nos relatórios do IPCC”, afirmou.
“Se os autores possuem esse ponto de vista, respeito e sugiro que publiquem em periódicos científicos conceituados. Esses serão certamente incorporados nos relatórios do IPCC”, enfatizou Lucon. A propósito, os autores do artigo “Contabilidade climática enviesada” afirmaram que o próximo o será, justamente, publicar a tese numa revista científica.
Sobre os critérios da contabilidade das emissões de carbono, a reportagem entrou em contato com o Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil, que afirmou que os questionamentos estão na jurisdição do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que tem sede no Quênia. O Ministério das Relações Exteriores, principal negociador nas convenções climáticas, informou que o Brasil busca respaldar seus posicionamentos com base na melhor informação disponível e nos dados científicos existentes. Mas não comentou a suposta distorção atual, apenas lembrou que a metodologia sobre a contabilidade das emissões de carbono em setores específicos é objeto de atualizações periódica em função dos avanços conceituais e metodológicos, como aconteceu, por último, em 2019.
“As particularidades de cada setor são, assim, consideradas em permanente atualização. Especificamente sobre a atividade agropecuária, existe amplo entendimento científico de que o setor é simultaneamente fonte de emissões e parte incontornável da solução para o problema climático, em particular no que se refere à gestão do uso da terra e às possibilidades de sequestro de carbono”, diz a nota.
“A posição tradicional do Brasil tem sido a de defender abordagem ao tema agrícola sob a perspectiva urgente da segurança alimentar. Em outras palavras: deve ser reforçada a importância de contar com financiamento internacional adequado para apoiar o desenvolvimento de conhecimento local, ciência e tecnologia, recursos humanos e infraestrutura voltadas para a redução do impacto das mudanças climáticas no setor agrícola, de modo a reduzir a vulnerabilidade do setor e assegurar a produção de alimentos necessária para atender à demanda mundial. Na visão brasileira, parte dessa construção de resiliência a pela adoção de práticas cada vez mais sustentáveis nos empreendimentos agropecuários - a exemplo dos programas ABC e ABC+, adotados no Brasil há cerca de uma década”, sublinhou o Itamaraty.
Para o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho, a mensuração das emissões é, de fato, "uma contabilidade estranha".
"Confesso que, quando vejo uma produção de café, só enxergo floresta, biodiversidade e serviços ecossistêmicos. No entanto, desde a década de 1990, fomos acostumados a acreditar que produção agropecuária destrói o meio ambiente. Não é verdade. Os autores do artigo tocam em pontos polêmicos, mas ainda continuam acreditando que devemos mensurar CO2 equivalente", observa o pesquisador. Ele lembra que, diferente da exploração de combustíveis fósseis, o setor agropecuário emite, mas também é capaz de produzir sumidouros. "Imagine uma banheira em que a água fosse o CO2. Se o ralo estiver fechado, tudo que entra de água preencherá toda a banheira, até transbordar. O sistema fechado é mais ou menos o caso da produção de combustíveis fósseis. No caso da produção agropecuária, (...) estamos na banheira aberta. Como o ralo não está fechado, a água que entra vai sair pelos canos, e a banheira não vai transbordar. Na agricultura é assim: existe emissão de CO2, mas há também sumidouros". Assim, avalia Eustáquio, o setor agropecuário, diferentemente do de combustíveis fósseis, tem todo potencial para mitigar as próprias emissões, chegando a soluções, por exemplo, como a da "carne carbono neutra".
Para Vargas, da FGV, a revisão dos critérios da contabilidade climática é algo que não será resolvido por força de sugestão a este ou aquele organismo internacional. “A gente tem que colocar em xeque a maneira como os países fazem sua contabilidade. Aqui existe um debate científico, global, que precisa ser acompanhado de um questionamento político, em que os países prejudicados por esse critério coloquem na mesa de negociações uma discussão sobre parâmetros justos na construção dessa rampa para a economia verde. Estamos tornando muito mais íngreme para quem produz alimentos e muito mais plana para quem produz petróleo. E isso é indesejável para todos, para o planeta, porque em última análise pode acabar criando ao longo do tempo uma desconfiança sobre a justiça do próprio regime”, arremata.
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